terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Parir e Nascer

Cesárea
por Kalu Brum
Era uma barriga imensa cheia de vida e sonhos. O ventre se avolumava à medida que meus questionamentos iam ficando mais aguçados. Como o bebê sairia de lá de dentro? Era bom senti-lo dentro de mim, mas tinha medo de saber como seria quando chegasse. Será que seria como nas novelas que depois que a bolsa rompe, em segundos, a mulher estava descabelada de tanto gritar com um bebê gigante nos braços que já sabe mamar?
Achava que parir era natural, muito embora desconhecesse a razão pelas quais todas as minhas conhecidas e familiares terem tido cesáreas. Eu achava que bastava querer. Me orgulhava da minha avó que havia tido todos seus 7 filhos em casa, sem anestesia.Eu não queria tanto. Só desejava parir, só desejava que meu filho saísse pelo mesmo lugar que ele entrou.
Eu tinha um médico que me conhecia desde que eu era adolescente. Gosto do meu médico, que sempre me fez acreditar que eu escolheria sobre meu parto, apesar de não dar abertura para falarmos sobre ele. Os meses se passaram até que eu comecei a sentir desconfortos no corpo, na alma, contrações que as vezes estavam acompanhadas de dor.
Já não gostava mais de estar grávida. A ansiedade de ver meu filho nos braços era maior, agora, que meu desejo de esperar parir. Eu nunca disse isso, mas ainda bem que meu médico disse. Depois de um ultrassom com 39 semanas, constatou que meu líquido estava baixo (ou que tinha circular de cordão ou que o Doppler deu alterado). Fiquei convencida de que meu bebê estava correndo risco de morte.
Saí do consultório, em um misto de tristeza e alívio. Eu não teria que parir. Mas, em breve, meu filho estaria comigo. Aproveitei para depilar, fazer as unhas e escova. Queria estar linda quando meu filho me visse.
Aquela noite quase não dormi imaginando o sofrimento do meu bebê dentro do meu ventre. Estava com medo do que poderia me acontecer. Mas tinha certeza de que o médico faria o melhor por nós.
Acordei, fiz uma bela maquiagem, peguei a malinha com roupas, o enfeite da porta da maternidade. Chegando a recepção fui recebida com frieza. Passei pela avaliação de um médico que nunca me viu. Meu médico estava a caminho. Fez um exame de toque, falando com o assistente, como se eu não estivesse lá. Fui levada, de cadeira de rodas, vestida de uma feia camisola que me deixava com as nádegas de fora para sala de pré-parto. Iriam fazer a raspagem dos meus pelos, mas Gilmara, a depiladora, já tinha feito um excelente trabalho. Tiraram meu esmalte. As luzes artificiais não me deixavam descansar. Ouvia outras mulheres parindo. Parecia haver dor. Mas parecia ouvir vida ali. Aqui, estava sozinha, com frio e medo.
Alguém entrou para pegar minha veia. Me chamavam de mãezinha. Eu não tinha roupas e agora, não tinha nome. A enfermeira saiu, sem me olhar, tocar ou acolher. No silêncio ouvia meus medos. De cadeira de rodas fui para o centro cirúrgico. Encontrei com minha família e logo nos separamos enquanto estava recebendo a anestesia. Sentada, curvada, só desejava uma mão para segurar, para me fazer sentir viva. Mas só escutava frases desconexas da conversa do anestesista com o assistente. Eles falavam de futebol. Eu parecia ser um pedaço de carne qualquer.
Logo fui colocada deitada. Não sentia nada: nem frio, nem calor, nem meus dedos. Estava morta da cintura para baixo. Um pano cinza subiu a minha frente e lá de longe, sem poder em nada cinza , que estava em toda parte, meu companheiro. Eu só escutava o barulho do aparelho dos batimentos cardíacos. Ele pulsava, mas eu me sentia morta, invisível. Respirava ar artificial, meus braços esticados e abertos como numa cruz.
Todos olhavam o nascimento menos eu. Era uma boneca? Um pedaço de carne aberto? O bebê estava encaixado e sentia meu corpo balançar de um lado para o outro com violência. Já esquecia porque estava ali em meio a conversas tão vazias. Comentavam sobre o terremoto que abalou o mundo. E eu? E meu mundo?
Estava frio. Senti um calor no meu coração. Era um chorinho. Mas logo o levaram. Queria saber se estava tudo bem. Mas ninguém me dizia. Eu não podia me mexer. Rapidamente alguém me traz o bebê e sem que pudesse me virar ele já tinha ido. Nem sabia como ele era. Ele nem viu meus olhos borrados, nem minha maquiagem desfeita. A toca cobria a escova.
Meu companheiro saiu e estava sozinha novamente. Eles me costuravam como se fosse uma coisa qualquer. Distraia-me no som da aparelhagem. Tudo acabou e fiquei sozinha no centro cirúrgico. Tinha que conseguir mover as pernas para subir no quarto e ver meu bebê. Primeiro lutei para ver se conseguia qualquer movimento. Foi em vão. Desisti. Nem apagaram as luzes. Nem desligaram o ar. Estava com frio, com medo, sozinha. Será que isso é nascer como mãe? Será que isso é nascer? Em meus sonhos arquitetava um nascimento diferente em que estivesse em pés e com braços firmes para segurar meu filho nos braços e dar-lhe os seios assim que chegasse.
Ps: Esta história é mera ficção. Existem cesáreas necessárias, mais bonitas e cheias de significado. Mas, a grande parte das histórias, são bem parecidas com essas. Ela completa a visão do nascimento pelo bebê que passou por uma cesárea logo abaixo seguida pela visão de um bebê que passou por um parto respeitoso.

Como você quer nascer?
por Kalu Brum
Era um mundo silencioso. Já reconheço a voz doce da minha mãe, a grave voz do meu pai e algumas pessoas que sempre estão por perto. Aqui o mundo é constante. Não sinto frio, ou fome. Desconheço a sede, o ritmo, a gravidade.


Os ruídos são constantes: o pulsar das veias, as batidas do coração, o ruidoso estômago. Já sabem que posso detectar a luz ou ausência total dela.
Sinto medo, tenho pesadelos, tenho soluço. Gosto da sensação de quando minha mãe come chocolate.
Ouço barulhos estranhos. Ela está com medo. O que isso que sinto? Estou ficando sonolento. Sinto uma queda. Estou do lado de fora. Como cheguei aqui? Vejo luzes que me cegam. Onde está o coração? O calor? Aqui dentro está frio, muito frio. Desliguem este vento.
Estou afogando. Meu Deus?! Choro com força. Me salvem! Mãe, cadê você? Não sei falar sua língua. Estou com medo! Pelo menos um ambiente quente. Mas é duro. Por que ferem minha pele esfregando este pano?
Sinto um cano a me violar as narinas. O que fiz para merecer tanta dor? Este cano dentro  de mim. Cadê minha mãe? Chego bem perto mas me levampara longe. Quero minha mãe! Por favor!
Esta balança fria o que é?  Por que estão a me medir? Eu só quero um colo e peito. Choro sem parar. Estou exausto. Sei que me olham através do vidro. Pai! Vó! Me tirem daqui! Por que ninguém me ouve?
O que vão pingar nos meus olhos? Nitrato de prata? Mas eu nasci por cima. Como posso ter uma cegueira causada por gonorréia? Ela não tem gonorréia! Isso arde, arde muito. O que fiz para ser tratado assim? Choro com vigor. Estou em pânico.
Pelo menos um carinho na minha perna. Por que aperta? Ai que dor! Uma agulhada! Mais choro. É a vitamina K, medicação usada para prevenir um distúrbio de coagulação. Não te contaram que tem a versão oral? Não te falaram que é só não me banhar e deixar eu mamar? Eu não sei falar, mas de tudo sei. Tudo isso é dor. Será sempre assim?  
Estou exausto. Vou dormir. Quem sabe acordo do pesadelo?
 Espere, por que me acordam? Ah não! Por que tiram minha roupa? Estou com frio. O que é esse liquido? E essa espuma? Eu preciso da proteção da minha pele que retiram. Quem faz tudo isso? Cadê minha mãe? Será que ela  é quem faz isso tudo?
Estou pronto para conhecê-la. Quem é ela mesmo? A pediatra? A enfermeira? Ela também não me reconhece. Não me abraçou com as entranhas, nem ao menos me viu nascer através dos panos. Tenho cheiro de sabão e ela de medicamentos.
Estou sonolento, sofri demais, recebi anestesia nas veias, colírio nos olhos, injeção na perna. Ela me mostra os seios. É difícil para mim, é difícil para ela que geme de dor também. Ela foi vítima como eu, da ignorância do sistema. Mas através dos seus seios, ainda há esperança.
Não vou nascer novamente, vou curar minhas feridas no mundo. Mas se eu pudesse escolher optaria pela primeira parte deste conto. Se você acha que não é verdade tamanho sofrimento lembre-se que 40% das crianças da rede pública  nascem assim como eu. Passam o que passei. E no particular, quase 80%. Quero nascer diferente e só você que me gesta pode optar.
Não se deixe enganar. Não me deixe sofrer. Este vídeoeste e este tem cenas fortes de partos assim como o meu. O seu pode ser diferente. E eu, que ainda estou em você, posso chegar com doçura e gentileza. Pense nisso. Mude o meu plano de parto enquanto pode. E saiba o que realmente acontece para escolher uma realidade gentil. Nascer pode não mais rimar com sofrer. Pode ser sinônimo de  sorrir.



Era um mundo silencioso. Já reconheço a voz doce da minha mãe, a grave voz do meu pai e algumas pessoas que sempre estão por perto. Aqui o mundo é constante. Não sinto frio, ou fome. Desconheço a sede, o ritmo, a gravidade.
Os ruídos são constantes: o pulsar das veias, as batidas do coração, o ruidoso estômago. Já sabem que posso detectar a luz ou ausência total dela.

Sinto medo, tenho pesadelos, tenho soluço. Gosto da sensação de quando minha mãe come chocolate.
Aproximo-me da nona lua. Estou pronto para nascer. Não sei o que significa isso, mas minha natureza deu o início do trabalho de parto. Aqui estava ficando apertado.
 Talvez o braço da minha mãe seja igualmente confortável. Recebo um abraço leve, outro um pouco mais apertado.  Em meu corpo posso sentir os hormônios de êxtase. Entro no ritmo da vida em uma dança minha e dela. É gostoso sentir essa massagem no meu corpo, este braço apertado que me aperta com força em despedida me lançando ao mundo. Esse estreito lugar comprime meu peito, lança o líquido dos meus pulmões para fora.
Aqui fora tudo é estranho. Que frio! Mas este corpo quente me aquece. Ouço sua voz. É ela. Nos conhecemos finalmente. Ainda somos um.  Eu ligado a ela pelo cordão que me nutriu. O ritmo continua natural. O cordão pulsa e quando cessa me desligo sem desgrudar.
É estranho respirar, difícil. Cofff, atchim. O ar entra amigo. Estou seguro, estou sobre ela. Que cheiro bom ela tem. E seu coração ainda posso ouvir ao longe. Isso me dá paz.
Estou com fome. Que delícia este peito! Cheiro, lambo, mamo. Aqui fora é bom. Suave. Não sinto frio porque tenho seu corpo. Nem medo porque ouço sua voz. Foi uma longa jornada e por fim estou no mundo, ainda absolutamente dependente de ti.
Quero dormir porque confio no mundo externo e suave que você me proporcionou.

Fonte: 
http://www.mamiferas.com/blog/2011/03/cesarea.html

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