Relato de Parto

da preparação para um parto domiciliar a saída da maternidade

Eu estava preparada para o meu parto. Assim como todas as mulheres, eu nasci com a capacidade de parir. O instinto estava pronto. Mas isso não bastava. Eu preparei mente e corpo para o parto. Pesquisei, li livros e textos, naveguei na internet por sites e blogs, participei de cursos, conversas, encontros. Mergulhei no mundo da gestação, parto e maternidade. Preparei meu físico para o parto com aulas de hidroginástica. No yoga aprendi a olhar pra dentro, a respirar, a sentir, a meditar. Com a preparação para o parto ativo resgatei minhas essências selvagens de uma mulher mamífera. Renovei minhas crenças com a busca pela minha espiritualidade. Despertei minha alma feminina. Preparei o ninho com muito amor e dedicação. Conheci pessoas maravilhosas que trilharam junto comigo o belo percurso da gestação. E ao meu lado, o melhor companheiro do mundo. Tudo por nossa filha que nos escolheu para nos transformar.
Antes de engravidar eu já tinha certeza de que queria um parto normal. Nunca me questionei sobre “onde e como” parir, mas queria parir naturalmente, na água. Achava que esta era uma forma menos agressiva para um bebê chegar ao mundo. Logo que descobrimos que estávamos grávidos, corremos fazer um plano de saúde para que pudéssemos aproveitar as consultas e os exames com a cobertura do plano. Sabíamos que os procedimentos obstétricos não seriam cobertos devido ao período de carência. Sabendo disso, passamos a procurar maternidades, seus preços e serviços. Tudo muito caro e as únicas opções eram: normal ou cesárea, quarto ou enfermaria. Sempre que entrava em contato com as maternidades perguntava sobre o parto na água e a reação foi sempre a mesma, negação. Começamos a reparar que o tal parto natural na água não era nada fácil e que inclusive era muito difícil um profissional que atendesse esse tipo de parto. Aí começou nossa busca incansável por profissionais humanizados. Aliás, essa foi uma palavra que aprendemos em nossas pesquisas. Parto natural, humanizado, ativo, empoderamento, doula. Palavras que passaram a fazer parte do nosso dia a dia. Numa única noite lemos páginas e páginas de depoimentos de parturientes e profissionais, assistimos dezenas de vídeos, descobrimos o encanto do parto domiciliar, choramos por uma legião. Buscamos as doulas que atendiam aqui em Curitiba e descobrimos a Inês, Patrícia, Luciana e Katya. Lembro que naquela noite mal dormi tamanha euforia. No dia seguinte, liguei para Inês, para a Patrícia e para a Luciana. Marcamos horário para conhecê-las e conhecer o seu trabalho. Durante a semana continuamos lendo sobre o universo do da gestação e parto. Nos informamos muito sobre os processos da gestação. Quando conhecemos a Inês, ficamos maravilhados com seu jeitinho e seu encanto nos dominou. A própria Beatriz sinalizou sua simpatia por esta doula. Ela nos passou o contato da Adelita, enfermeira obstetra que, com sua equipe, assiste a partos domiciliares aqui em Curitiba. Inês também nos convidou a participar do encontro de gestantes do Espaço Aobä que aconteceria no dia seguinte. Fomos ao encontro e simplesmente adoramos. Ouvimos sobre intervenções obstétricas e ficamos chocados com tanta interferência num processo absolutamente natural. Como já havíamos gostado bastante da Inês e através do Aobä manteríamos contato com a Luciana, desmarcamos o encontro com a Patrícia, que foi muito querida ao telefone. Voltei ao Espaço Aobä para conversar com a Luciana sobre parto e conhecer a aula de yoga ministrado pela Talia. Lu é um grande exemplo para nós. Dona de uma consciência e doçura marcantes. Tínhamos certeza de que o parto domiciliar faria parte da nossa história. Na semana seguinte comecei a freqüentar as aulas de yoga e parto ativo. Foi amor a primeira vista. Tanto com a prática quanto com a Talia, uma das melhores pessoas que já conheci, um encanto de ser humano. Nesta mesma semana conhecemos a Adelita, mais um anjo que a partir daquele dia faria parte de nossas vidas. Não víamos a hora de começar os atendimentos domiciliares, mas ainda faltava 20 semanas para isso. Quando contamos aos familiares e amigos, a unanimidade nos taxou como loucos, retrógrados e até irresponsáveis. Conforme nosso conhecimento aumentava, os julgamentos diminuíam. E ao final, muita gente já estava do nosso lado e outros “engoliam a seco”. Bom, no restante da gestação foi muita busca, pesquisa, leitura, vídeos e mais vídeos.
Participamos dos demais encontros do Espaço Aobä e do workshop sobre parto ativo com Janet Balaskas. Uma experiência incrível. Quando qualquer dúvida surgia nós não exitávamos em perguntar para essas grandes meninas que estavam nos acompanhando. Construímos uma amizade muito especial. Nosso obstetra se mostrou contrário ao parto natural, oferecendo inclusive uma data anterior as suas férias para marcarmos a cesárea. Nunca mais voltamos ao seu consultório. Por indicação da Adelita, conhecemos o Drº Leonardo, e desde minha primeira fala deixei bem claro nossos interesses e inclusive o informei que, caso necessário, não seria ele que me acompanharia durante o parto na maternidade, pois iríamos para uma maternidade do SUS, a Vitor Ferreira do Amaral, dita humanizada. Ele foi muito receptivo e se mostrou a favor do parto natural. Nos explicava cada etapa da gestação com riqueza de detalhes. Quando trocamos de obstetra estávamos com 24 semanas. Continuamos nosso pré-natal muito satisfeitos com ele. Na segunda consulta, ele disse que provavelmente nossa Bebê já estaria com a cabeça para baixo. Ficamos contentes, pois minha única preocupação é que ela ficasse sentadinha, impossibilitando o parto domiciliar. Porém, na 34ª semana ele nos disse que achava que ela ainda não havia virado, e que se não virou até ali, não viraria mais. Eu bati o pé e disse que acreditava que ela viraria. Ele recuou e disse que talvez pelo fato de eu me exercitar, inclusive com as posições do yoga, era possível que ela virasse. Saí do consultório muito sensível. E chorei o dia todo. Naquela noite teria mais um encontro de gestantes, e passei quase todo o encontro chorando no cantinho. Ao final, a Lu e a Talia vieram falar comigo e ajudaram o Raul a me tranqüilizar. Aquela dúvida me perturbou durante as semanas seguintes.
Com 35 semanas começamos o acompanhamento com a equipe de enfermeiras obstetras. Adelita, Aline e Maria Rita. Mulheres sensíveis que compreendem e respeitam o ciclo da vida e que estavam em perfeita sintonia com nossos motivos para a escolha de um parto domiciliar. Nossos encontros eram banhados a comidas carinhosamente feitas por mim, muita conversa, histórias, risos, e é claro, muito contato com a pequena Beatriz. Nossa menina sempre respondeu aos nossos toques e interagia com cada um que tocava em minha barriga. Ouvíamos seu coraçãozinho, a freqüência da placenta, conversávamos sobre nossos desejos, sobre a gestação e o parto. E elas também ficaram na dúvida sobre o posicionamento da Beatriz. Dúvida cruel.
Com 37 semanas fizemos um super ultra-som ecológico lindamente colorido.  Maria Rita foi perfeita, delineou cada traço com muito cuidado e carinho, e contou com a ajuda de um super papai. Neste dia, a posição da Beatriz dava fortes indícios de que ela estava de cabeça para baixo, na posição cefálica. E assim foi feita a pintura. Até que com 38 semanas, numa terça feira, fizemos a última ultra-sonografia tecnológica. E a apresentação pélvica da Beatriz foi confirmada com as palavras da médica “é, parto natural não vai ser não. Ela ta sentada. Sua cesárea deverá ser marcada para uma semana, pois bebê pélvico é indicação absoluta de cesárea”. O Raul naquele momento ficou mais abalado que eu. Eu preferi a certeza, porque a dúvida estava me tirando o sono. Conversei com a Talia e com a Lu, e elas me ensinaram exercícios e técnicas para ajudar a Bebê a virar. Os dias seguintes foram árduos, intensos, doloridos e muitos sensíveis. Fiz acupuntura, engatinhei, virei cambalhota na água, utilizei a técnica da haptonomia, conversei muito com Beatriz. Buscamos dentro de nós respostas para o fato dela não ter virado. Temos nossas suposições. Achávamos que ainda tínhamos tempo, pois ainda faltavam aproximadamente 10 dias para a data provável do parto, e nos últimos tempos não víamos nenhum bebê nascendo com 38/39 semanas. No final de semana próximo, Adelita iria tentar um versão externa, e ainda iríamos reunir As doulas Talia, Inês e Luciana para conversarmos sobre outras possibilidades para o parto.   
Entramos em trabalho de parto. Dia 2 de Julho de 2011, aproximadamente 6 horas da manhã. Um sábado gelado, dia cinzento típico de Curitiba. Foi um susto. Ainda na cama, senti as primeiras cólicas, voltei a dormir, mais uma cólica, e assim foi durante meia hora. Estava sonolenta, sem entender minhas sensações, mas percebendo o início da chegada da minha filha. Senti vontade de ir ao banheiro. O fiz. E lá sentada mandei mensagem para Talia, minha querida amiga, doula, com quem estive durante mais da metade da gestação nas aulas de yoga e parto ativo, falando sobre o que eu estava sentido. Voltei ao quarto, deitei novamente, mas não consegui manter a posição por mais nenhum minuto. Foi quando o Raul percebeu minha agitação e levantou para saber o que estava acontecendo. Ele percebeu rapidamente que eu estava em trabalho de parto, pois junto comigo aprendeu na teoria tudo o que acontece com uma mulher em trabalho de parto. Talia respondeu a mensagem perguntando se eu queria que ela viesse pra minha casa. Eu disse que achava que ainda era cedo e que a manteria informada. Comecei a conversar com minha Bebê e contar-lhe o que estávamos passando. As ondas de contração desde o início eram intensas, mas muito rapidamente ficaram ainda mais fortes e próximas, com intervalos regulares de 5 em 5 minutos. Eu estava tão bem, tão feliz, tão inteira e entregue às contrações. Eu me movimentava livremente, respirava profundamente e sentia cada movimento. Raul ligou para Maria Rita que não atendeu. Ligou para Aline e ela aconselhou um banho quente para ver se realmente estávamos em trabalho de parto. Disse que se as dores e as contrações se acalmassem, provavelmente estaria ainda nos pródomos. Fiz o que recomendou. Entrei debaixo do chuveiro, com a água batendo em minhas costas para ver se as dores diminuíam. O que não aconteceu. Pedi para que o Raul trouxesse a bola suíça e toalhas para eu colocar no chão gelado. Não agüentei ficar muito tempo no chuveiro, pois estava muito frio.  Na verdade o que eu sentia eram cólicas fortes, perfeitamente suportáveis, que nada combinavam com um cenário de sofrimento. Eu estava amando sentir as contrações. Estava alegre, com sorriso no rosto, era pura energia. Na sala, onde só havia um tapete, pedi ao Raul que colocasse uma coberta grossa para que eu pudesse me ajoelhar com conforto. A posição mais agradável para passar pela contração era em quatro apoios sacolejando o quadril. Não pensei sobre isso, apenas deixei que meu corpo me falasse o que fazer. Minha mente, meu corpo, minha alma e meu espírito apenas sentiam as vibrações da minha pequena Beatriz. Naquele momento tudo era ela, por ela e para ela. Quando Raul falou com Maria Rita, ela disse que deveríamos ir à maternidade, pois o trabalho de parto progredia rapidamente. Ele me contou com muito cuidado e percebi em sua expressão um ar puramente melancólico. Disse que era pra eu pegar minha bolsa, documentos e alguma roupinha para Beatriz. Eu recebi a notícia com tranqüilidade, mas no fundo não pensei no que aquilo significava. Separei a malinha dela, suas roupinhas e fraldas. Olhei cada peça, conversei com minha filha, contei-lhe o que estava fazendo. Raul disse que era pra fazer uma mala simples, que depois ele voltava para pegar mais coisas. Mas eu estava preparando as coisinhas da nossa filha, com calma e cuidado. Não conseguia fazer nada depressa. Ele me ofereceu pão para eu não ficar com o estômago vazio, mas não consegui comer nada, apenas mordisquei a fatia de pão. Nessa altura, quando a onda vinha, eu abraçava o Raul e soltava meu corpo sobre o dele, com a cabeça baixa respirava tranqüila, soltando ar calmamente com um baixo sonzinho de “uuuu”. Eu não pensava em nada, apenas que a partir daquele dia tudo seria diferente, melhor e mais bonito com a presença da minha filha.
Com tudo pronto, Raul foi buscar o carro no estacionamento do prédio da minha mãe, a meia quadra da nossa casa. Enquanto isso eu continuava a arrumar a malinha da beatriz. Peguei minhas coisas e senti uma vontade grande de agarrar meu travesseiro, já que não poderia abraçar o Raul com ele dirigindo. No carro, tomamos o cuidado em forrar o meu banco com lençol descartável, caso a bolsa estourasse.  Naquele momento quis minha mãe comigo. Passamos em seu apartamento para chamá-la para ir junto conosco à maternidade. Subir as escadas do prédio nunca foi tão difícil. Minha mãe tinha acabado de acordar e seu café da manhã estava pronto. Quando falamos que eu estava em trabalho de parto e que estávamos indo para a maternidade, ela não acreditou. Levou uns 30 segundos para assimilar o que estava acontecendo comigo, e foi com uma contração que ela se convenceu. Ela foi se vestir e pegar sua bolsa para que pudéssemos sair. Senti em seu olhar que ela estava com dó de mim por estar sentindo dor. Mas eu estava bem, apenas incomodada com o fato de que por algum tempo teria que ficar sentada, imóvel dentro do carro. Ainda na casa dela, senti vontade de comer uma banana, e a comi com muito gosto. Já o café da manhã da minha mãe ficou intacto. No caminho para a maternidade minha mãe contou o intervalo entre as contrações. Estava regular de 2 em 2 minutos. Quando chegamos lá, ai sim senti dor. Dor porque dali em diante eu não seria mais dona de mim, dona do meu corpo. A atendente da maternidade fazia perguntas direcionadas a mim, e eu, sem a menor condição de responder. Raul tomou as rédeas e fez toda a parte burocrática para meu internamento. A sala de espera estava tranqüila, quase vazia, com cadeiras quebradas, desconfortáveis. Fiquei ali por pouco tempo, logo me chamaram para o acolhimento. Ali começou a humilhação, o desrespeito. Ninguém pôde entrar comigo. Nem meu marido, nem minha mãe. Uma enfermeira me encaminhou à uma sala gelada, com uma cama ginecológica, uma mesa velha, e um biombo próximo a uma janela. Ela me pediu que esperasse até que o médico chegasse. Ele entrou na sala em instantes e nem sequer me olhou. Com frieza, pegou uma ficha com meus dados e pediu que eu tirasse toda a roupa e acessórios e vestisse uma camisola. Com muita dificuldade, despi-me e vesti a camisola aberta nas costas. Saí de traz do biombo me sentindo péssima, envergonhada, constrangida. O médico me pediu para deitar na cama ginecológica para realizar um exame de toque. Ele constatou que eu estava com 4 centímetros de dilatação e confirmou que a minha Bebê estava com apresentação pélvica.
Fui encaminhada à sala de trabalho de parto, onde muitas mulheres em TP ficavam, separadas apenas por um biombo. No caminho encontrei minha mãe, Raul e Maria Rita. Eles estavam numa luta para que a maternidade cumprisse a lei do acompanhante. Até que permitissem a entrada do Raul, eu fiquei sozinha, apenas sentindo minha Bebê. Neste momento eu já estava muito introspectiva, não queria conversar, as dores estavam muito fortes. Raul, depois de muita discussão, entrou na sala e ficou ao meu lado, segurando minha mão. Fui ao banheiro e uma enfermeira me tirou de lá pelo risco da Bebê nascer na privada. Eu estava numa maternidade, porquê havia riscos em minha Bebê nascer naturalmente como fosse?!  Beatriz era tão pequena, tinha certeza que escorreria facilmente pelas minha pernas. Mas não me deixariam parí-la . Me deram uma cumbuca de inox, a comadre, caso eu sentisse novamente vontade de ir ao banheiro. A comadre foi colocada no degrau da escadinha para subir na cama, foi deixava na frente de todo mundo. Nem xixi consegui fazer. Eu não conseguia me mexer. Estava tão constrangida. Sentia-me humilhada, invadida, ignorada, desrespeitada. Mantive-me deitada durante o restante do tempo. As dores, por isso, pareciam mais intensas, mas eu simplesmente não conseguia me mover. De um lado uma parturiente gritando dizendo que ia morrer. Do outro, uma mulher sem dores. Eu estava fora do meu lugar. Eu não deveria estar ali. A dor do desrespeito era tão grande que eu já não podia suportar. Era uma dor na alma, no coração, no espírito que estava sendo calado. Durante uma contração uma enfermeira me enfiou uma agulha no punho. E nem tinha como ser diferente. Contrações de 2 em 2 minutos. Era soro para hidratação, pois eu havia vomitado e os rumores é que eu iria pra cesárea. Mas isso em nenhum momento me foi comunicado com decência. De repente entra um médico, escreve em minha ficha, não me olha, e diz ao vento “me disseram que você comeu uma banana, não deveria, e por isso, sua cesárea ocorrerá por volta das 13h”. Puxa vida!! Ainda faltavam 2 horas e meia!! Eu sabia disso porque algum infeliz colocou um relógio na sala de trabalho de parto. Assim que uma contração terminava, eu mal conseguia relaxar, pois o tic-tac do relógio ressoava em meus ouvidos me lembrando que a próxima onda estava chegando. E assim, nessa angústia o tempo passou, e novamente aquele médico estranho apareceu na porta. Uma enfermeira entrou e me disse que iria para o centro cirúrgico. Pois bem, eu e o Raul estávamos indo pra lá. Mas fomos barrados. A enfermeira disse que ele só poderia entrar com a permissão do médico. E aqui começou mais um drama: o desrespeito a lei do acompanhante. O médico, Drº Sergio Chiesa, estava próximo a nós e rapidamente nos disse que Raul não poderia me acompanhar, pois iria atrapalhar seu trabalho. Grosseiramente, dirigiu-se a nós como personagem principal do MEU parto. De forma estúpida, nos disse que ele era o médico de plantão ali, a paciente era dele, a cirurgia era dele e, portanto, ele decidiria quem entrava na sala. O médico não permitiu argumentações e Raul, por medo de que ele oferecesse algum risco a mim ou a nossa filha, calou-se, deu-me um beijo e disse “vai dar tudo certo”. Senti um vazio tão grande que é impossível mensurá-lo. Estava desorientada, confusa, amedrontada, insegura, sensível, frágil, vulnerável. Não me conformo que o pai daquela criança que estava nascendo não pôde participar ao meu lado da chegada de sua filha. Eu não acreditava no que estava acontecendo.
Após a despedida, entrei no centro cirúrgico, rodeada de pessoas estranhas que conversavam aleatoriamente sobre os mais diversos assuntos que nada tem a ver com o universo de um nascimento. Luzes fortes, incômodas para mim, imagine para a minha bebê! Sim, eu estava sofrendo! Dores? Ainda as sentia, mas diante de toda a situação a dor da alma era infinitamente mais forte. E então veio o anestesista, pediu que me sentasse na cama e não me mexesse. Uma enfermeira tagarela me ajudou a sustentar a posição. Um dos meus maiores medos antes de engravidar era a tal anestesia. Falavam-me de uma agulha imensa que doía ao perfurar a pele. Não senti nada. Em instantes um calor me subia pelas pernas. Confesso que a sensação foi ótima, e eu queria não sentir mais dores. Já me bastava a dor na alma. Naquele momento me veio uma preocupação: “como vocês sabem se anestesia pegou?”. A enfermeira me disse que seria feito um teste. Levei um beliscão. A partir daí minhas lembranças são mais vagas. Eu mal sentia que estava ali. Lembro de terem amarrado minha mãos, subido um campo azul e preparado o restante do cenário. Vi o médico se aproximando e ele começou a mexer na minha barriga, estava passando o PVPI. E até eu ver minha filha foi a sensação que tive. Senti também uns solavancos no alto da minha barriga. Depois fiquei sabendo que tinham garfos abrindo minha barriga e um outro instrumento batendo em todos os meus órgãos. Ouvi um barulhinho de aspirador de dentista. Quanto sangue tiraram de mim! Aqueles minutos pareciam uma eternidade e eu ainda não acreditava. 13h51. A pediatra trouxe uma garotinha para eu conhecer. Minha filha! Linda! Perfeita! Encantadora! Muito atenta, com os olhinhos arregalados, em silêncio, apenas sentido este novo mundo. Beijei-a. Cheirei-a. Dei boas vindas a ela e a disse que eu era sua mãe. Agradeci-a por ter me escolhido e lhe falei que teria que nos separar por alguns instantes, mas que logo nos encontraríamos novamente. “Eu te amo filha”. E nos braços na pediatra ela se afastou de mim. Eu queria que isso nunca tivesse acontecido. Queria ficar com ela. Sentir seu calor, seu perfume, sua respiração. Queria oferecer toda a minha proteção, meu amor, meu carinho, meu peito. Queria meu marido, queria sua mão. Queria minha família completa.
Enquanto os profissionais terminavam a cirurgia, o Raul apareceu com nossa bebezinha no colo. Lindos! Meus amores! Raul chorava, eu chorava, e a Beatriz apenas nos olhava. Foi um momento muito sereno, de pura contemplação. Nós três, finalmente! Ficamos assim por alguns minutos, mas o médico mandão pediu para que o Raul saísse porque ele precisava terminar o seu trabalho. Por Deus do céu, como o Raul poderia atrapalhar o procedimento médico? Eles estavam em extremos opostos, a presença do Raul não mudaria em nada para ele, mas para mim representava muito. E de novo fiquei sozinha. Quando o médico começou a me costurar ele perguntou se eu queria que a Adelita tirasse os meus pontos. Obviamente disse que sim, pois nela eu confio. A cirurgia terminou e me levaram para uma salinha. Aproximadamente uma hora depois do parto, a enfermeira Isabella trouxe a Beatriz enrolada numa manta, parecia uma trouxinha, tão pequenininha (2.755Kg e 47Cm – apgar 9/10). Isa colocou minha bonequinha perto do meu peito e me ajudou a dar seu primeiro mamá. Foi tão lindo. Beatriz tinha uma pega perfeita. Mamou com gosto. Isabella foi um anjo muito iluminado que esteve ao nosso lado no nascimento da Beatriz. Ela ajudou o Raul a entrar no centro obstétrico e assistir ao parto pelo vidro da porta. Ele ficou lá o tempo todo. Entrou na sala com a pediatra para a realização dos primeiros procedimentos neonatais. Mais ou menos 5 minutos depois do nascimento, Beatriz foi para os braços do Raul. Foi amamentada com todo amor e carinho pelo pai. Recebeu calor, proteção, afeto. Não poderia haver melhor colo naquele momento. Pai e filha em profundo contato, tão íntimo, tão intenso. Para sempre!
Ainda na salinha pós-parto a Isa me entregou a impressão da placenta em papel – a árvore da vida – e a própria placenta, que normalmente seria jogada no lixo. Imagina! O órgão que nutriu minha filha e nos uniu durante tanto tempo merece um final mais digno. Isa foi rápida e salvou nossa placenta. Bem, depois de termos ficado naquela salinha que ninguém, exceto a Isa, aparecia para ver como estávamos, fomos levadas para o corredor onde toda a família pôde nos ver. Foi tão legal. Embora eu estivesse apenas semi-presente por causa da anestesia, foi bom ver todo mundo. Minha mãe. Como foi bom vê-la! Depois da rápida visita, fomos levadas para o quarto. Lá o atendimento a mim e a minha filha foi excelente. As enfermeiras foram muito atenciosas e queridas.
Raul ficava o tempo todo conosco. Um pai e um marido exemplar. E eu só apreciava minha pequena. Não cansava de olhá-la. Ela ficava em meu peito o tempo todo. Mamava tanto e tão bem. Como era bom senti-la em meu corpo. Precisei muito da ajuda do Raul e da minha mãe – durante a noite – pois não conseguia pegá-la sozinha, mal conseguia ficar em pé. Precisava sempre de um apoio para levantar sem cair devido a tontura que sentia. Ser mãe me fez valorizar ainda mais minha própria mãe. Um verdadeiro anjo que Deus encarregou de cuidar de mim toda a vida.
As duas noites que fiquei na maternidade eu não dormi, e quando cochilava o fazia sentada, pois todas as vezes que tentei deitar sentia uma dor imensa que me fazia chorar. Ainda assim fazia o possível para me movimentar, caminhar, mesmo com dor e dificuldade. Foi muito complicado. Não era pra ser assim. Eu deveria estar inteira para a minha filha. Me sentia derrotada, frustrada. Quanta dor ainda sinto por isso. Quanta lágrima ainda derramo. Meu direito de parir foi arrasado. Meu sonho foi destruído. Me senti massacrada por conveniências médicas e burocráticas. Meu parto só não foi pior, graças à linda menina que saiu de minhas entranhas pela portinha que abriram para ela conhecer o mundo. Sim, meu parto foi traumático, doloroso, desrespeitoso, humilhante. E dizer que “o importante que é ela está aí, nasceu bem e tem saúde” não cura minhas feridas de um parto no qual eu não participei. Nunca poderei dizer a ela “fui eu que te pari”. E apesar dos pesares, a chegada da Beatriz foi o momento mais feliz da minha vida e sinto uma enorme gratidão por tudo.
É muito dolorido lidar com a dor da desconstrução de um parto, de um sonho. Mas aceito de coração tudo o que nos aconteceu e entendo que esta foi nossa história, e que ela aconteceu exatamente como deveria ser. A partir disso transformamos nossas vidas. É difícil, e talvez eu leve a vida toda para processar tudo. Mas é com o dia a dia de mãe que minha ferida vai sendo curada. É com cada movimento e conquista da Beatriz que percebo o quanto somos maiores que tudo o que aconteceu. O parto representa apenas uma parte do grande universo da maternidade consciente. A cesárea não nos torna piores pais, ela apenas nos coloca um desafio ainda maior na arte de maternar. O nascimento da minha filha representa a maior transformação pela qual eu poderia passar. E aquele dia conturbado, um dos melhores e mais intensos da minha vida. Para Beatriz quero sempre fazer o melhor para que ela tenha o maior carinho, o maior amor, o mais sincero toque, o melhor aleitamento, a melhor infância. Por que eu sou a melhor mãe do mundo para minha filha. E por mais dolorosa que tenha sido, a experiência da cesárea foi sim muito positiva. Com ela tenho aprendido a me superar, a entender, a aceitar. E por ela quero ser ainda melhor para minha família.
Talvez minha transformação como mulher não fosse tão grandiosa se tudo tivesse saído dentro do planejado. Mas por tudo que passei, pela dor do desrespeito, descobri que posso ajudar outras famílias a não passarem pela mesma humilhação que eu. Entrei na luta pela mudança no atendimento obstétrico atual. Pelo empoderamento feminino, pelo direito de parir com liberdade, pelo direito de nascer com respeito e dignidade.  Por uma sociedade mais consciente, pela harmonia entre pais e filhos. Pelo desabrochar dos novos seres. Os filhos do mundo. As novas gerações. O nosso futuro. O futuro da humanidade.